Dois A.B.C. de cordel biográficos de Rodolfo Coelho Cavalcante : O A.B.C. de Lucas da Feira e A.B.C. de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros e o A.B.C. de cordel na obra de Jorge Amado : Jubiabá
Dois A.B.C. de cordel biográficos de Rodolfo Coelho Cavalcante : O A.B.C. de Lucas da Feira e A.B.C. de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros
e o A.B.C. de cordel na obra de Jorge Amado : Jubiabá
Prolongam a sua existência através do tempo, indefinidamente, porque sobre as sua obras, material ou moral, se hão de construir novas obras, ainda e sempre, num largo vôo de eternidade. Estes homens são os heróis e os santos […]
Gastão Sousa Dias, Africa Portentosa, Lisboa, 1928, p. 146
No conjunto da literatura de cordel destacam-se textos poéticos mnemônicos chamados pelos poetas populares brasileiros e pelo seu público de A.B.C., á-bê-cê e abecê. São poemas estróficos impressos nos folhetos e vendidos nas diversas regiões do Brasil. Nestes folhetos[1]de oito páginas[2], os temas são louvados em ordem alfabética - de “A à Z” mais raramente de “A à Til” (como na tradição oral brasileira[3]) ou seja cada estrofe é anunciada por uma letra do alfabeto. A primeira palavra segue esta estrutura, as estrofes seguem a tradição do cordel de seis ou sete versos septassilábicos rimados (xAxABBA), raros são os poemas em décima. Segundo Raymond Cantel as introduções, as conclusões em acróstico nominativo (cada letra do verso corresponde à uma letra do nome do poeta), o emprego de letras como o K ou oY e o sinal Til, a presença de outros poemas no mesmo folheto no qual se encontra um Abc poético[4]justificariam-se, em parte, porque o alfabeto brasileiro composto de 23 letras não poderia preencher as oito paginas convencionais do folheto. É bem possível que o poeta seja, em certos casos, obrigado a se adaptar às exigências de publicação e ao número de páginas mas as introduções, as conclusões e o emprego do Til são elementos fundadores da tradição poética dos Abc poéticos. Como todos os folhetos de cordel, sua capa ilustrada pode indicar o nome do poeta, o editor, o lugar e a data de publicação. A população de origem rural ou urbana percebe a poesia escrita como um texto oral cuja performance apresenta um repertório variado de temas apreciados por todos, e cuja regularidade de sua estética favorece a memorização.
Deste modo, as letras do alfabeto estruturam uma linguagem poética onde as palavras se materializam num espaço/tempo pré-definido. Sua estética peculiar fundamentada à partir desta arquitetura alfabética mnemônica elabora obras instrutivas e didáticas que abrangem temáticas muito diferentes das que são apresentadas pelos folhetos de cordel e pelos romances. Embora o público tenha tendência a chamar todo folheto de cordel de á-be-cê:
“Pegue um á-bê-cê qualquer, mesmo o Romance de João Cambadinho e a Princesa do Rei Miramar, o Papagaio Misterioso ou os Sofrimentos de Jobão (quedando o orgulho, o castigo da justiça de Deus e leia [...] cuida já se foi e á-bê-cê afora mesmo os de João Martins de Ataíde, que tem uma rede de distribuidores muito forte pelo sertão adento. Mas o verdadeiro á-bê-cê, ele fica espalhado nas coisas do povo, e é cantigo, mito, livro, mêdo, oração[5]”.
o A.B.C de cordel é muito específico porque preserva a tradição formal dos acrósticos alfabéticos[6]. Além disto, o tema desenvolvido se apresenta como uma lição. A fronteira entre o lírico e o didático não existe. Desta forma, o poeta popular posiciona-se como um mediador cultural e social mas também como “poeta-pedagogo”.
Segundo Jacques Goody o acróstico alfabético é uma mise en ordre[7] que possui sua própria dinâmica. No âmbito da literatura de cordel, os modelos e os esquemas formais variam muito pouco facilitando a memorização do assunto. Fundamenta-se uma memória, preserva-se e divulga-se uma cultura e constroi-se uma dinâmica social caracterizada pela fusão de elementos tradicionais e modernos.
Nem todos temas são escritos em ordem alfabética porque a organização pré-determinada deve seguir um discurso didático, descritivo e enumerativo podendo explorar temas práticos. São poema epidícticos que num tom laudatório, raramente crítico, descrevem e celebram um fato histórico, político ou social, tratam do amor ou dos amantes, descrevem uma cidade, uma região, uma profissão ou enumeram os traços e as qualidades de atores, cantores, escritores famosos e familiares à cultura popular. Muitas homenagens foram escritas em ordem alfabética sobretudo aos que participaram do desenvolvimento da cultura popular como Orígenes Lessa, Luiz Otávio, Jorge Amado, Castro Alves, Roberto Carlos e até à rainha dos baixinhos a Xuxa Menenguel...os poetas populares também foram louvados como Rodolfo Coelho Cavalcante celebrado por Jânio Lima Fontes e João Alberto Lima Fontes, por Homero do Rego Barros e por Hildergades Viana[8]. Quando um personagem histórico é cantado em ordem alfabética o poema se transforma num panegírico e a biografia converte-se em poesia. Neste caso, a palavra memória remete às ideia de aprendizagem, de memorização, e à de lembrança que renova conceitos tradicionais.
Portanto, o Abc poético biográfico traz de volta personagens históricos transformando-os em lenda: “é para ficar na memória” diz o poeta popular. Convém ressaltar que no contexto da literatura de cordel dois poetas populares famosos se especilizaram neste “gênero”: o alagoense Rodolfo Coelho Cavalcante e o paraibano Paulo Nunes Batista. Também, de forma mais ampla a biografia de cangaceiros transmitida pela tradição oral e pela literatura de cordel inspirou Jorge Amado a fundamentar vários de seus romances em torno da estética do acróstico alfabético : Jubiabá (1935), A.B.C de Castro Alves, (1941) Tereza Batista cansada de guerra (1972).
Uma análise dos A.B.C. de cordel de Rodolfo Coelho Cavalcante: A.B.C. de Lucas da Feira, n° 1378, Salvador, s.e., s.d., e A.B.C. de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros, n° 1384, s.v., s.e., jan. 1976, e um estudo detalhado da presença do Abc poético na obra Jubiabá (2000)[9]podem explicar de que forma se realiza o processo de heroicização de personagens que entram na memória coletiva elaborando um universo imaginário e fundamentando uma determinada cultura.
Ao lado de Paulo Nunes Batista que louva poetas, escritores, antropólogos e músicos... Rodolfo Coelho Cavalcante da mesma forma escreveu muitos A.B.C. de cordel biográficos. Mas, também trouxe de volta a cultura tradicional ao re-escrever o poema de Lucas da Feira composto pelo meirinho Sousa Velho[10] na metade do século XIX e um poema sobre o aprisonamento de Maria Bonita, Lampião e seu grupo de cangaceiros. De fato, Rodolfo Coelho Cavalcante é conhecido por ter uma vasta produção de A.B.C. de cordel e pela sua produção regular. Conta porque começou a escrever desta forma :
“Aí foi assim, quando cheguei na Bahia em 1945, muita gente no sertão perguntava : « O senhor tem o A.B.C. do pavão misterioso ? ABC do soldado jogador. ABC do Cego Aderaldo com Zé Pretinho ? » Então entendi que eles chamavam de ABC qualquer história rimada. Daí comecei a escrever uma série de ABC que variam de temas : políticos, homens célébres e mesmo personagens que a gente criava. Creio que mais de cem folhetos escrevi somente em ABC. Depois mudei para a vida do Dr. Fulano, Dr. Sicrano… A.B.C. do amor, A.B.C. do beijo, A.B.C da dansa, A.B.C. dos namorados foram os meus primeiros Abecês. Não respondo categoricamente se eu fui o criador para fins comerciais. Quem sabe se Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athayde e Chagas Batista não escreveram ? Na Bahia, ao menos, foi eu [11]”.
Nasceu em 1919 em Alagoas e morreu em Salvador em 1986; Teria escrito perto de 1500 folhetos[12]. Sua obra é homogênea e simples : seus folhetos não ultrapassam 8 páginas onde as letras ABC/ DEF / GHI / JLM / NOP / QRS /TUV/ XYZ[13] anunciam as vinte e quatro estrofes. Em certos poemas a letra K aparece anunciando palavras como Kilómetro, Krisna, Kibon, ou substituindo o som da letra C na palavra Kristo, Kuando e Kae. É comum encontrar uma saldação ao personagem louvado nos últimos versos dos poemas biográficos.
A intenção de apresentar o mundo do século XX ao seu público está presente em Rodolfo Coelho Cavalcante, ele trata da história, dos costumes, da economia, dos problemas sociais. Quando a história aparece é para inscrevê-la na realidade social, política e econômica nacional.
“Biografia sempre foi um dos esplendores meus. Desde 1948 escrevo biografias e neste gênero me especializei nos últimos anos. Muitas biografias escrevi : […] Livros em biografias de políticos foram mais comerciais para mim. Tirava edições de cinco mil exemplares mais ou menos. Foram as que mais escrevi […]. Agora tem biografia quando a gente sente que tem uma característica que serve de exemplo […] O interessante não é só biografar, o interessante é fazer uma espécie de ilustração em tôrno daquele indivíduo, é adjetivá-lo, dar o seu valor através de imagens poéticas. Não pode ser seco, puro, a personagem serve apenas de ponto central […][14]”.
O panegírico como expressão da louvação exerce uma facinação sobre os auditores chegando à criar uma dimensão heroica dos personagens. Destacam-se, portanto dois tipos de folhetos biográficos no conjunto da obra de Rodolfo Coelho Cavalcante : o primeiro grupo descreve políticos, escritores, músicos, personagens famosos da sociedade brasileira que atuaram na cultura popular. O segundo grupo onde o ABC de Lucas da Feira e o ABC de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros se enquadram relaciona-se ao ciclo heróico do grupo dos cangaceiros e valentes. De forma geral, os primeiros são descritivos e enumerativos enquanto que os segundos elaboram a imagem do herói/bandido à partir de um fundo narrativo.
Neste segundo grupo de folhetos, a memória poética situa o personagem num tempo simbólico : o aprisonamento e a morte dos bandidos. A imagem do bandido descrita poéticamente de “A à Z” enumera os códigos sociais destes mesmos e elabora o herói popular. Pode-se compreender melhor esta dinâmica através da explicacão de Ronaldo Daus:
“Em torno do núcleo significativo simbólico do cangaceiro, constroi-se uma zona de representação esquematizada que se alimenta de material histórico, mas que apresenta toda uma escala de transições entre o típico e o real. Do grande número de elementos individuais forma-se um sistema esquemático relativamente fixo, que exclui quase tudo que não é comprovado através de modelos[15]”.
De fato, Lucas da Feira, Maria Bonita e Lampião são personagens históricos de grande importância para a sociedade nordestina do fim do século XIX e começo do século XX. Facínoras formam com Cabeleira, Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Valente Vilela e outros o Olimpo[16]dos bandidos, valentes e cangaceiros cantados pelos poetas populares.
O negro Lucas da Feira, nascido em 1807 na fazenda Saco do Limão é considerado como um bandido feroz. Temido no Recôncavo baiano foi caçado em Santo Amaro, São Gonçalo e Cachoeira. Ferido a tiro pelo oficial da justiça José Pereira Cazumbá acabou na forca na Feira de Santana no dia 26 de setembro de 1849 acusado de 150 mortes. Uma destas mortes até foi chamada “o caso da Virgem crucificada”. Durante seu julgamento aparece um Abc poético em quadras composto pelo meirinho Sousa Velho. Em 1957, Sabino de Campos publica uma biografia romanceada: Lucas, o demônio negro na qual publica o poema.
Maria Déia chamada Maria Bonita por Lampião nasceu na Bahia, na região de Jeremoabo, casou-se com um sapateiro comerciante com quem não se entendia. Um dia, encontrou-se com Lampião com quem fugiu e integrou o cangaço. Era chamada de “Dona Maria” pelo bando, ou “a mulher do Capitão”. Teve uma filha de nome Maria Expedita que nasceu em 1932 e foi entregue pelos pais a um coitero de confiança em Sergipe. Maria Bonita permaneceu no cangaço ao lado de Lampião durante 7 anos. Ambos morreram durante o assalto da volante de João Bezerra da polícia de Alagoas. Os cadáveres foram mutilados e as cabeças de Lampião, de Maria Bonita e de seu grupo ficaram perto de trinta anos expostos em Salvador no Museu Nina Rodrigues.
Nestes dois poemas, a esquematização é elaborada pelo poeta popular à partir das convergências entre o real e o imaginário biográfico criado através das escolhas dos “núcleos significativos da maneira de agir”, dos elementos poéticos tradicionais e do tom laudatório. No tempo do alfabeto e da poesia o personagem encontra um lugar privilegiado e o alfabeto projeta-o na memória coletiva.
O exame detalhado destes dois folhetos apresenta alguns pontos em comum : a exaltação da valentia, o gosto pela liberdade, o respeito ao código de honra, a relação conflituosa com o poder representado pela polícia e a invulnerabilidade dos bandidos que acaba no momento da traição. Marcante é a comunhão entre Maria Bonita e Lampião criada pelo poeta criando diálogos e mostrando atitudes similares.
Maria Bonita era
Uma moça inteligente
Tinha coragem de sobra
Pra topar qualquer valente.
Se Virgulino matava
Ela com raiva sangrava
Na hora do sangue quente.
“Homem honrado tem lar..”
Virgulino assim dizia.
Que nada!..-dizia ela-
Isso é pura fantasia.
Eu já fui mulher casada,
Vivia decente, honrada,
De fome quase morria!
(A.B.C. de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros)
De fato, no imaginário popular ambas personalidades parecem formar uma só pessoa. Nestes dois folhetos, o alfabeto desenrola três tópicos tradicionais e comuns aos folhetos heróicos. O primeiro tópico narra as condições de passagem de uma vida à outra :
Bem me diziam meus sócios
Que eu mudasse de condição,
Que Cazumba por dinheiro
Era a pintura do Cão.
Por causa de ser teimodo
Terminei na perdição.
(A.B.C. de Lucas da Feira)
A amante de Lampião
Foi mulher de um sapateiro,
Esta vendo Virgulino-
O terrível cangaceiro
Resolveu mudar de vida
Para tornar-se homicida
No Nordeste brasileiro.
(A.B.C. de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros)
O segundo tópico retrata aspectos da vida dos personagens dentro do banditismo :
Homem pobre não roubei,
Pois não tinha o que roubar,
Mas os ricos de carteiras
Nenhum deixei escapar,
Quando não dava dinheiro
Só tinha um geito: matar.
(A.B.C. de Lucas da Feira)
E nas letra G, H e I no ABC de Maria Bonita, Lampião e seus Cangaceiros
"Gosto muito desta vida
Do cangaço do sertão.
Emquanto você for vivo
Não tiro o rifle da mão…”
Dizia ela contente
Na vista de sua gente
Osculando Lampião.
Homem honrado tem lar..”
Virgulino assim dizia.
Que nada!..-dizia ela-
Isso é pura fantasia.
Eu já fui mulher casada,
Vivia decente, honrada,
De fome quase morria!
-Inda que me dê um trono
Não abandono o cangaço
Pois no dia que não brigo
Eu sinto o maior cansaço.
Sou mulher, é verdade,
Porém a minha vontade
E sangrar gente no aço!
Enfim o terceiro tópico em torno do qual a imagem do herói se elabora, concentra-se nas condições do aprisonamento e da morte dos bandidos. É a “expressão lítrica dum acontecimento histórico”[17] expresso pela voz do poeta popular.No A.B.C. de Lucas da Feira o público é informado desde a primeira estrofe :
Adeus Saco do Limão
Lugar aonde eu nasci,
Eu vou prêso pra Bahia,
Levo saudades de ti,
Sabendo que vou morrer,
Talvês eu não volte aqui !
Informação retomada na estrofe G :
Gostaram quando fui prêso
Para sofrer crueldade,
Escoltado pra Bahia
Deixando a minha cidade.
Adeus Sacos do Limão,
De ti eu tenho saudade !
No ABC de Maria Bonita, Lampião e seus cangaceiros o aprisonamento é avisado à toda comunidade pelo noticiário:
Segundo o noticiário
Que toda imprensa nos deu
Na “FAZENDA ANGICO”
Lampião ali morreu.
Denunciou-lhe um coitero
A BEZERRA – o verdadeiro
Caçador do grupo seu.
Desta forma, a enumeração esquematizadas dos elementos distintivos de cada personagem estruturados letra por letra favorece o tom laudatório transformando-os em lenda e propondo um material poético exemplar que se repetirá no decorrer do tempo em forma de arquétipo. Dragonnetti em seu livro La technique poétique des trouvères dans la chanson courtoise. Contribution à l’étude de la rhétorique médiévale ao tratar das formas de descrição na poesia medieval explica este fenômeno:
“Faire voir, dans le langage rhétorique d’Hermogène, ne signifie donc pas restituer par le style l’individualité d’un personnage, ses particularités psychologiques, mais dégager le symbole exemplaire, ou si l’on veut, son archétype. Décrire, sera donc avant tout, donner, au moyen d’hyperboles, une image idéale exaltante ou déprimante de l’objet, selon qu’elle est dictée par un sentiment d’admiration ou de blâme. Etroitement liée au parti pris du blâme ou de la louange, la description est donc essentiellement morale, pathétique et idéale: l’irréalisme en constitue une des caractéristiques marquantes ; sa vérité est dans le style, non dans l’observation.[18]
O A.B.C. biográfico tem como principal função combater o esquecimento trazendo à memória aqueles que pertenceram à história coletiva. Pode-se refletir, de fato, sobre esta capacidade do poeta popular em transformar a realidade e levar o público ao imaginário até transformá-la em lenda. Neste sentido, A estrofe Y do A.B.C. de Lucas da Feira é explicita.
Ypsilon – é a penúltima
Letra para terminar
Meu abecê por lebrança
Para na historia ficar,
Vai morrer Lucas da Feira
Que a terra há de lembrar !
A partir destas primeiras colocações é possível ler detalhadamente a obra Jubiabá e compreender como Jorge Amado retoma a especificidade dos Abc poéticos biográficos conseguindo através de uma exemplar habilidade reuni-los sob multiplas formas criando uma fusão expressiva e poética entre a cultura popular e seu universo romanesco. Pode-se até de dizer que Jorge Amado é um escritor de “A.B.C. em forma de romance”.
O A.B.C. de cordel permeia a criação de Jorge Amado, está em Jubiabá (1935), em Os subterrâneos da Liberdade, vol I: Os ásperos tempos (1954), em A Luz do Túnel (1954), em Tereza Batista Cansada de Guerra (1972), Tocaia Grande (1984) e na obra biográfica ABC de Castro Alves (1941)[19]. Segundo Raymond Cantel o ABC de cordel teria um lugar de destaque na sociedade baiana, informação que justificaria o interesse de Jorge Amado por esta forma poética tão singular criando um mundo ficcional no qual se encontram vários jogos transtextuais e intertextuais.
Em Jubiabá[20] a presença do A.B.C. de cordel é explícita. Todas as dimensões dos A.B.C. de cordel heróicos elaboram paulatinamente a identificação do personagem António Balduíno ao herói : primeiro ao bandido que é considerado na cultura popular como herói, em seguida ao personagem socialmente implicado numa luta. Jubiabá é um romance de formação no qual o protagonista vai se transformando ao vivênciar experiências e peripécias. Seu objetivo é ser cantado num A.B.C. de cordel para servir de exemplo à sociedade. Na cultura popular o Abc poético tem valor de referência e assume a função de poema memorial.
António Balduino chamado Baldo, negro descendente de escravos, vive e cresce no Morro do Capa Negro na cidade de Salvador da Bahia. Imerso desde pequeno na cultura popular que lhe transmite e ensina valores através da música, das conversas, dos ritos afro-brasileiros, procura ao longo da obra reconhecimento social. Para obtê-lo apoia-se nas histórias de cangaceiros contadas identificando-se à elas.
“Antônio Balduíno aprendeu muito nas histórias heróicas que contavam ao povo do mporro e esqueceu a tradição de servir. Resolveu ser do número dos livres, dos que depois teriam um ABC e modinhas e serviriam de exemplo aos homens negros, brancos e mutlatos, que se escravizavam sem remédio. Foi no morro do Capa-Negro que Antônio Balduíno resolveu lutar. Tudo que fez depois foi devido às histórias que ouviu nas noites de lua, na porta de sua tia. Aquelas histórias, aquelas cantigas tinham sido feitas para msotrar aos homens o exemplo dos que se revoltaram. [...][21]
O Abc poético inscreve-se na formação do romance. Ao compreender o núcleo do romance Rubem Braga afirmou justamente que “O livro é mesmo um ABC em prosa […] Jubiaba é, assim, ao mesmo tempo, uma reportagem e um ABC[22]”. Desta forma, o elemento intertextual vai pouco a pouco, em etapas, se elevando à um elemento fundador da estrutura narrativa. Jorge Amado em toda a sua obra explora o didatismo e a capacidade de informação e transformação dos Abc poéticos. Capítulo por capítulo repetem-se as características individuas do protagonista que vão se tranformam em arquétipos tais como a liberdade, o gosto da briga, a valentia e, é claro, a sensualidade ao relaciona-se com as mulheres. Baldo é descrito como “negro livre, alegre, brigão, valente como sete”. Particularidades que são enumeradas e repetidas uma por uma na estrutura narrativa. A repetição da palavra ABC em 17 páginas exprime o desejo obsessivo de Baldo. Tansforma-se num leitmotiv que o impulsiona em suas decisões procurando reconhecimento como heroi popular. Mas não só ! Como poeta escreve o ABC de Zumbi dos Palmares publicado na Biblioteca do Povo. O didatismo também aparece quando o narrador afirma que “a greve foi um ABC”
De fato, a obra revela todo o didatismo da tradição oral apoiando o projeto criativo de Jorge Amado em escrever um romance exemplar. O herói de Baldo é o cangaceiro Lucas da Feira lembrado cada vez que Zé Camarão canta uma versão do poema em quadra composto por Souza Velho. Jorge Amado escolhe estrofes chaves: o A canta o aprisonamento do heroi, o E e o F descrevem sua altivez, o povo enaltece sua crueldade, o H diz que é um heroi do povo porque só rouba rico, enfim a estofe M celebra o sedutor de mulheres mulatas, crioulas e até branquinhas. É interessante observar como na estofe N Rodolfo Coelho Cavalcante retira a agressividade que caracteriza Lucas da Feira em relação às mulheres. Os dois últimos versos introduzem traços líricos que saltam aos olhos e que poderiam dar um certo charme ao herói. Inverossímel até !
In: Lucas da Feira: demônio negro
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In: Jubiabá |
A.B.C. de Lucas da Feira : Rodolfo coelho Cavalcante |
Adeus Saco do Limão |
Adeus Saco do Limão |
Adeus Saco do Limão |
Lugar onde eu nasci |
Lugar onde eu nasci |
Lugar aonde eu nasci, |
Eu vou preso para baixo, |
Eu vou preso pra Bahia |
Eu vou prêso pra Bahia, |
Levo saudades de ti. |
Levo saudades de ti. |
Levo saudades de ti, |
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Sabendo que vou morrer, |
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Talvêz eu não volte aqui ! |
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Entusiasmo carreguei, |
Entusiasmado eu carreguei |
Entusiasmado carreguei |
Muitas pompas e grandeza, |
Pompa e muita grandeza |
Pompa e bastante grandeza |
Pois lá no meu rancho eu tinha |
Pois no meu rancho eu tinha |
Porque no meu rancho tinha |
Botes de rapé ‘Princesa’. |
Boite de rapé à princesa |
Pote de RAPE PRINCESA |
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Fui preso para a Bahia |
Fui preso para a Bahia |
Fui prêso para a Bahia |
Fizeram grande função |
Fizeram grande função |
Fizeram grande função |
Mas eu desci a cavalo |
Mas eu desci a cavalo |
Mas eu desci a cavalo |
E os guardas de pés no chão. |
E os guardas de pés no chão. |
E os grandes de pés no chão |
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Só ouvia o povo dizer: |
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-Eis o Lucas do Sertão. |
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Homens pobres não roubei, |
Homem pobre nunca roubei |
Homem pobre não roubei, |
Pois não tinham que roubar, |
Pois não tinha o que roubar |
Pois não tinha o que roubar, |
Mas os ricos de carteiras |
Mas os ricos de carteira |
Nenhum deixei escapar, |
Nenhum deixei escapar. |
A nenhum deixei escapar |
Quando não dava dinheiro |
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Só tinha um geito : matar ! |
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Mulatas de bom cabelo, |
Mulatas de bom cabelo |
Mulatas de bom cabelo, |
Cabrinhas de boa côr, |
Cabrinhas de boa cor |
Carbinhas de boa cor, |
Crioulinhas, por debique, |
Crioulinhas só por debique |
Crioulas só pôr debique, |
E branca não me escapou. |
Branquinhas não me escapou |
Branquinhas cheirando a flor |
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Todas elas namorei |
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Porque sou conquistador |
Assim, os alicerces da vida de Baldo são construídos à partir de um mundo imaginário transmitido pela tradição.
A performance cria a fusão entre o povo, o poeta e a personagem: “Elas o admiravam como se ele fosse o próprio Lucas da Feira […] Olhava (Zé Camarão) para a sua preferida e naquele momento olhava para ele era Lucas da Feira, o cangaceiro, o assasino, que no entanto amava alguém...[23]”. António Balduíno se identifica com Lucas da Feira cuja liberdade regia todas as suas escolhas e comportamento. Valores que aprendeu nos Abc poéticos. Para obter um A.B.C. de cordel - folheto memorial - ele precisava lutar pela liberdade e transformar-se em exemplo. Jorge Amado relaciona liberdade e memória. A liberdade é identificada, num primeiro momento, com os valores dos cangaceiros cuja vida é caracterizada por não ter rumo e nem apegos, e se transforma, na segunda parte numa liberdade consciente e amadurecida. É neste momento, que Baldo liberta-se verdadeiramente, exercendo um papel dentro da sociedade. Embora seja um representante ativo e construtor da sociedade sera louvado como um cangaceiro neste Adeus poético que “ficará na memória”.
ABC de António Balduíno
Este é o ABC de António Balduíno
Negro valente e brigão
Desordeiro sem pureza
Mas bom de coração.
Conquistador de natureza
Furtou mulata bonita
Brigou com muito patrão…..
…………………………….
Morreu de morte matada
Mas ferido à traição
Enfim, os pontos estruturadores dos Abc poéticos heróicos reproduzem uma linguagem fudamentada no imaginário popular. Eles transmitem a imagem do herói e sua especificidade criando esquemas tipos e elaborando arquétipos. Assim, edificam através de um jogo dinâmico verdadeiros memoriais poéticos populares.
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Bibliografia
BATISTA, Paulo Nunes, Abc de Carlos Drummond de Andrade, Rio de Janeiro, Itaiaia, 1986.
CALMON, Pedro, História do Brasil na Poesia do Povo, Rio de Janeiro, Bloch,1973.
CANTEL, Raymond, La Littérature Populaire Brésilienne¸ Poitiers, Centre de Recherche Latino-Americaine, 1993.
DAUS, Ronaldo, O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do nordeste, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa,1982.
DRAGONETTI, Roger, La technique poétique des trouvères dans la chanson courtoise.Contribution à l’étude de la rhétorique médiévale, Genève / Paris, Slatkine Reprints, 1979.
GOODY, Jacques, La raison graphique, Paris, Minuit, 1979.
KUNZ, Martine, Rodolfo Coelho Cavalcante. Poète populaire du Nord–Est brésilien, Université Paris III, Sorbonne Nouvelle, U.E.R. Etudes Ibériques, 1982.
MARTINS, J. de Barros, Jorge Amado,Trinta anos de Literatura, São Paulo, Martins, 1961.
SEMIK, Véronique Le Dü da Silva, De l’Abc poétique à l’A.B.C. de cordel au Brésil : une forme traditionnelle de « A à Z », Tese de doutorado, Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense, 2007.
A.B.C. de Lucas da Feira – Rodolfo Coelho Cavalcante
[1]. Hoje a literatura de cordel é também divulgada e vendida pela Internet.
[2]. A Editora Luzeiro situada em São Paulo vende A.B.C. de cordel de 16 páginas e antologias nas quais reunem-se três A.B.C’s de 32 páginas. Este formato é exepcional.
[3]. Os Abc poéticos reunidos nos cancioneiros brasileiros dos finais do século XIX e começo do século XX apresentam um corpus de poemas muito amplo no qual se destaca o TIL. Este acento é considerado pelos poetas como uma letra e favorece a elaboração de estrofes conclusivas.
[4]. O Abc poético corresponde ao acróstico alfabético. O A.B.C. de cordel é um Abc poético impresso e vendido no circuito da literatura de cordel.
[5]. BATISTA, Paulo Nunes, Abc de Carlos Drummond de Andrade, Rio de Jnaeiro, Itaiaia, 1986, p. 5 – 7.
[6]. SEMIK, Véronique Le Dü da Silva, De l’Abc poétique à l’A.B.C. de cordel au Brésil : une forme poétique traditionnelle de « A à Z », Tese de Doutorado, Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense, defendida em 2007. Publicação prevista para 2010.
[7]. GOODY, Jacques, La raison graphique, Paris, Minuit, 1979, p. 11.
[8]. FONTES, Jânio Lima, FONTES, João Laberto Lima, A.B.C. a Rodolfo Coelho Cavalante, n°8, s.v., editor Fortes Sobrinho, 1986 ; BARROS, Homero do Rêgo, A.B.C. do trovador Rodolfo Coelho Cavalcante, s.v., s.e., 1978 ; VIANA, Hildegardes, O A.B.C. de Rodolfo Coelho Cavalcante, s.v., s.e., s.d..
[9]. AMADO, Jorge, Jubiabá, Rio de Janeiro, Record, 2000.
[10]. A.B.C. de Lucas da Feira, In: CAMPOS, Sabino, Lucas, o demônio negro, Rio de Janeiro, Pongetti, 1957, p. 172 – 176.
[11]. Martine KUNZ, Rodolfo Coelho Cavalcante. Poète populaire du Nord–Est brésilien, Université Paris III, Sorbonne Nouvelle, U.E.R. Etudes Ibériques, 1982, p. 227.
[13]. Cada grupo de letras equivale a uma página.
[14]. Martine KUNZ, Rodolfo Coelho Cavalcante. Poète populaire du Nord–Est brésilien, op.cit., p. 62.
[15]. DAUS, Ronaldo, O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do nordeste, Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa,1982, p. 62.
[16]. CANTEL, La Littérature Populaire Brésilienne, Poitiers, Centre de Recherche Latino-Américaine, 1993, p. 55. La geste des cangaceiros a inspiré très largement les poètes populaires. Les premiers hors-la–loi du siècle sont célèbres dans des publications parfois récentes. Citons Lucas da Feira, Les Guarabiras, Jesuino Brilhante, les Cabeleiras, le Valente Vilela. Mais plus que tous les autres António Silvino et Virgulino Ferreira Lampião ont fourni pendant quarante ans une matière d’actualité brulante aux poètes populaires.
[17]. CALMON, Pedro, História do Brasil na Poesia do Povo, Rio de Janeiro, Bloch,1973, p. 10.
[18]. Dragonetti, Roger, La technique poétique des trouvères dans la chanson courtoise.Contribution à l’étude de la rhétorique médiévale, Genève / Paris, Slatkine Reprints, 1979, p. 250.
[19]. Os ásperos tempos fala do ABC de Gonçalão, em A luz do túnel: Jorge Amado cita Baldo “quando correu a notícia da tua morte, o negro Balduíno fez um ABC, até hoje contam no cais da Bahia. Tocaia Grande : “Jesus da Mata, natural de Feira de Santana, incomparável no improviso, tangendo a viola na boca do sertão, espalhou dos canaviais do Recôncavo aos cacuais do sul o ABC de Castro Abduim, dito Tição, em cujas estrofes de pé quebrado, em seis e sete sílabas rimadas, traçou a saga do negro, personagem de mil amores e incontáveis peripécias.
[20]. AMADO, Jorge, Jubiabá, Rio de Janeiro, José Olympio, 2000.
[21]. AMADO, Jorge, Jubiabá, op.cit., p. 26.
[22]. MARTINS, J. de Barros, Jorge Amado,Trinta anos de Literatura, São Paulo, Martins, 1961, p. 106-107.
[23]. AMADO, Jorge, op.cit., p. 17.